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lunedì 5 novembre 2012

Estórias de perna curta e de uma perna só


Se mentiras têm perna curta, estórias podem ter uma perna só. Principalmente se são escritas com “e”, com suas traquinagens e invenções. No dicionário Michaelis, a explicação para a palavra é adequadamente popular: “Estória: narrativa de lendas, contos tradicionais de ficção; ‘causo’; ‘Ouviram atentos aquelas estórias de mentira, da mula sem cabeça, do saci, do curupira. Mais tarde tiveram que mergulhar fundo nas histórias de verdade, para saber como foi construído o Brasil’ (Francisco Marins)”.

Tanto “estórias de mentira” quanto “histórias de verdade” encontram-se dissolvidas no livro “Estórias de Uma Perna Só” (R9 Artes Gráficas, 1º edição, 2010) de Ditão Virgílio. A obra retrata de maneira única, um Brasil extenso e antigo, que luta para preservar muitos de seus costumes interioranos, os quais, gradativamente, vêm sendo contaminados pelos grandes centros urbanos e por tecnologias. Mesmo com o exagero de Jô Amado ao dizer no prefácio do livro que este “discute toda a cultura de um povo” (pelo fato da palavra “toda” ser muito abrangente quando se trata da riqueza da cultura popular brasileira em seus cinco séculos de desenvolvimento), é fato que uma boa dose da base dessa cultura está contida nas 158 páginas da obra.

Lançado durante a oitava edição da já tradicional Festa do Saci na cidade paulista de
São Luiz do Paraitinga, “Estórias de Uma Perna Só” traz vinte capítulos escritos em versos que retratam a simplicidade do falar caipira e o modo de viver no campo, tendo sempre o saci- um dos mais fortes personagens mitológicos brasileiros, com data comemorativa em 31 de outubro- como protagonista das histórias. Originalmente lançados em forma de cordéis, os versos de Ditão tornam-se ainda mais mágicos com as ilustrações de Geraldo Tartaruga no início de cada capítulo.

O saci e o caipira encontram-se logo no primeiro verso do primeiro capítulo e o encontro, só podia ser fruto de molecagem do saci:
O caipira acordô di noite
C’os cachorro latino
Um sobio ardido
Ele tava ovino
O tropé dum cavalo
O saci tava vino
Pegá fumo no fogão
Aonde ele fica bulino

Mas como é sabido, existe amizade entre o saci e o caipira, que compartilham a realidade do ambiente rural, por mais que o último, muitas vezes, tente pegar aquele por meio de armadilhas. Porém, o saci alerta:
Se quisé me caçá
É só usa a penera
Mai tome muito cuidado
Num cometa essa bestera
Purque se eu iscapá
Eu tento a vida intera



A opção de um “falar caipira” nos versos é justificada na orelha do livro como uma maneira de “facilitar a compreensão e transmissão oral desse saber”. Reforça-se a ideia com um brevíssimo comentário sobre o surgimento desse falar, originário da união entre o português e o “nheengatu”, uma mistura de português e espanhol falado pelos indígenas no início da colonização do continente.

Assim, no ritmo sossegado do linguajar caipira (“nheengatu” significa “língua fácil”), as páginas também falam de outros encontros com personagens em sua maioria folclóricos, como “O Saci e a Iara”, “O Saci e a Caipora”, “O Desafio do Saci e a Mula Sem Cabeça”, “O Saci e o Lobisomem”, sem se esquecer do curupira e do boitatá em seus versos. É um resgate intenso do que há de mais conhecido no folclore brasileiro, através de anedotas repletas de informações tradicionalistas sobre tais personagens.
Im seguida eu notei
I bem longe avistei
Vino da banda di lá
Uma luiz iguar lamparina
Bem no morro lá im cima
Era o tar di Boitatá


Abordar um Brasil interiorano é também abordar a sua fauna e flora e citar representantes como a onça pintada, o bem-te-vi, a cotia, a sucupira e a embaúba. Ao mesmo tempo em que Ditão descreve a beleza e a riqueza das matas brasileiras, ele também fala de seus problemas recorrentes, como as queimadas. Impossível não se emocionar com o modo como ele descreve o alastramento do fogo e o consequente desespero dos animais e (por que não) das plantas.
Di repenti o pica-pau
Grita pra alertá (...)
Pusero fogo no mato
Temo que i apagá
(...)
O inxame di abeias
C’a rainha debandô
Só se ovia o istrondo
Do bambu que istorô
A fumaça foi demai
Que inté a árve chorô


Por sorte, no mundo folclórico, os problemas se resolvem por magia, e o saci, como defensor da mata, traz a chuva que apaga o incêndio.
Fiz magia veio a chuva
I o incêndio se apagô
Um rastro di destruição
Pela froresta ficô
Tentano apagá o fogo
Minha perna se queimô


Além da natureza, quem conhece ou vive no interior do país sabe da importância das
festas populares (de cunho religioso) nessas regiões. No livro, apesar de existirem passagens que exemplificam vários tipos de cultos e tradições, o destaque fica com a Festa do Divino, muito celebrada em diversos Estados, e que ganha uma “estória” completa em um capítulo. Quanto à culinária caipira, paçoca, pamonha, arroz doce, doce de abóbora, doce de leite, canjica e afogado de carne ajudam a recender as páginas com a ajuda do fogão a lenha.
As foia é preparada
Di uma em uma é lavada
Pra fazê o copinho
Minina segura a caneca
Pamonha vira boneca
Da cintura marradinha


Ao contextualizar o mundo rural com suas crenças, hábitos e situação socioeconômica, as estórias traçam paralelos com a situação do mundo moderno, seja por meio de catástrofes naturais (como as temidas “ondas gigantes”), seja por meio da migração do homem rural para a cidade ou ainda, dos aparatos tecnológicos que inundam os campos.
O caipira ino embora
Vai cabá sua curtura
Num sô contra calipio
Mai sim a monocurtura
Num comemo celulose
Nem essa madera dura
É cum sede di dinhero
Que cometem essa locura



É deste Brasil interiorano e folclórico que vem o autor, Ditão Virgílio. Nascido em São Luiz do Paraitinga em 1949, Ditão é agricultor e “poeta caipira”, como bem define Jô Amado. Além disso, na ocasião do lançamento de “Estórias de Uma Perna Só” em 2010, o escritor mostrou-se um “especialista em sacis”, ao esmiuçar as diferenças entre os “tipos” de saci e afirmar que os vê desde a infância. No entanto, deixou claro que saci “não aparece para todo mundo”. No livro, o saci avisa:
Quano tá na luiz do dia
Tem gente que faiz gozação
Dizeno que nun existo
Que é mentira ou invenção
Mai no escuro i sozinho,
Quano faço a aparição
Grita pur tudo os santo
Chora e pede perdão


Para entrar em contato com os editores da obra, escreva para re9artesgraficas@hotmail.com .



Originalmente publicado em Panis & Circus